A crise que começou sendo uma só – de saúde – rapidamente passou a ser conjugada no plural e ganhou novos adjetivos: no Brasil, a crise é de saúde, mas é também econômica, política e institucional. Vamos aqui focar numa delas: a econômica. Do ponto de vista econômico, o colapso da oferta, forçado pelas medidas de isolamento social, conjugado com a queda brusca da demanda, passa a caracterizar um cenário de recessão, cuja magnitude, segundo projeções do mercado, a varia numa queda de PIB de 4 a 7%. Nesse contexto, tornou-se consenso entre economistas que o momento pede pela elevação de gastos fiscais, mas de maneira focada e responsável, a fim de manter a renda dos trabalhadores e dar liquidez às empresas, sem comprometer tanto os fundamentos macroeconômicos. A questão que se coloca imediatamente é: como, então, financiar esses gastos?
Há algumas possibilidades evidentes, que suscitam debates acalorados entre os economistas quanto às suas efetividades e validades. Uma delas, muito discutida ultimamente, é a prática de emissão monetária, que pode ser feita diretamente, com o Banco Central emitindo moeda e a enviando ao Tesouro para o financiamento das políticas públicas (emissão sem lastro), ou, indiretamente, com o Banco Central recomprando os títulos emitidos pelo Tesouro. Para os que a defendem, a impressão, ao contrário do que se pensa, não seria potencialmente inflacionária porque a demanda está muito baixa (vide que, mesmo com a taxa de juros depreciada, a inflação permanece abaixo da meta) e há capacidade ociosa, o que faria com que a elevação da quantidade de moeda na economia não resultasse em elevação generalizada de preços, dada a baixa velocidade de circulação da moeda. Ainda, a emissão de moeda reduziria os juros e o custo da dívida pública, já tendo sido adotada por diversos países across the board, como Estados Unidos, Japão, Canadá e Reino Unido.
Há, no entanto, algumas ressalvas importantes que devem ser feitas aqui. Primeiro, a afirmação de que a emissão de moeda não vai gerar inflação não é totalmente verdadeira e precisa de algumas qualificações. A inflação é um fenômenos complexo e uma análise agregada pode não ser suficiente para capturá-la. A deflação de Abril veio acompanhada de alta em 114 dos 159 produtos alimentícios consumidos nos domicílios do IPCA, já que, com o isolamento social, as famílias têm recorrido mais às compras de supermercados e menos à alimentação na rua, além de terem tendência maior a estocar. Ou seja, apesar da deflação agregada do índice, produtos consumidos amplamente pela população (e que respondem por participação relativa importante na cesta de consumo dos mais pobres) tiveram elevação dos seus preços. Em segundo lugar, a emissão monetária, ao reduzir o juros pelo aumento da base, reduz o diferencial de juros e, por isso, amplia a desvalorização cambial (investidores vão colocar suas moedas em títulos menos arriscados e/ou mais remunerados, abrindo mão do real). A maior depreciação do câmbio tende a diminuir o poder de compra dos rendimentos familiares e eleva o preço de produtos importados ou de bens que são produzidos com insumos comprados no exterior. Além disso, o real não é meio de troca nem reserva de valor internacional e o Brasil não tem histórico de combinação de políticas monetárias e fiscais sustentável. A emissão monetária gera dúvidas quanto à capacidade do governo de honrar o valor da moeda e pode, por isso, desencadear pressões inflacionárias. Ainda, déficits financiados por moeda não são isentos em termos da dívida. Sob as metas de inflação, o BC atua fixando a taxa de juros e, para cumpri-la, deve ofertar a quantidade demandada de moeda pelo sistema. Com a emissão monetária, o aumento da quantidade de moeda pressionará a Selic abaixo do valor fixado pelo Copom. Nesse contexto, sempre que sobrarem recursos nos cofres dos bancos à Selic fixada, o BC terá de recomprar as reservas à essa taxa para reduzir a liquidez e elevar os juros. Apenas num contexto de Selic zero o custo seria nulo. Mas não temos condição de manter a Selic em zero, sob pena de maior depreciação cambial. Pela mesma razão que se impõem restrições à venda de títulos públicos ao setor privado, deve-se restringir a emissão monetária: ao elevar a dívida, estabelece-se elevados custos intergeracionais, materializados via corte de gastos futuros ou via elevação de carga tributária futura.
Qual a saída? O debate é extenso e requer técnica e responsabilidade. O que se pode dizer é que, certamente, o caminho não é pela emissão monetária. Poderíamos começar congelando o salário de servidores públicos, que, mesmo contando com estabilidade de carreira e com blindagem a diversas perdas, as quais os demais estão sujeitos, planejam receber aumento salarial em meio a um histórico desequilíbrio fiscal. Ao votar essa pauta nos próximos dias, o Congresso terá a chance de demonstrar se está a serviço do país ou dos interesses privados que perpetram a máquina pública brasileira desde sua fundação. Com as mesmas práticas de sempre – e isso vale para o salário dos servidores e para a emissão monetária -, obteremos os mesmos resultados de sempre; ou uma versão mais ou menos pior deles, a depender das demais variáveis operantes. O fato é que, como o dramaturgo irlandês George Shaw bem pontuou, “success does not consist in never making mistakes but in never making the same one a second time”.
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