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Ineficiência Jurídica: Alicerce de um Mercado


Quando se pensa na análise de valor de ativos, o que, geralmente, se vem à mente são ações e debêntures. Contudo, outro ativo que pode ser avaliado e negociado é o crédito proveniente de ações judiciais. Esse crédito nada mais é do que a transferência do dinheiro, que seria ganho pelo autor de um processo após a sentença de um juiz, para alguém que compre esse direito. Um paralelo semelhante é o adiantamento de recebíveis das empresas, no qual um banco, por exemplo, compra o direito de recebimento de um valor vendido a prazo por uma empresa, cobrando um juros por esse adiantamento.

Um dos fatores que justifica a existência desse mercado é a ineficiência e morosidade do processo judicial brasileiro. Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, em 2019 o tempo médio até a sentença para julgamentos de 1º grau atingia, nas varas federais, 7 anos e 4 meses e, nas estaduais, 6 anos e 1 mês. Por conta disso, empresas especializadas nessa atividade compram ações judiciais de pessoas jurídicas e físicas que, dada uma possível necessidade de liquidez, vendem a autoria do processo com um deságio em relação ao valor estimado de recebimento, caso o julgamento fosse seguido até o fim.

Por mais que não seja evidente a relação dessa forma de negociação e precificação com a de um ativo mobiliário, as possibilidades trazidas por esse tipo de mercado são vantajosas, tanto para as empresas como para as pessoas, sendo uma prática já estabelecida em outros países como os Estados Unidos. No Brasil, os impactos da covid-19, somados aos precedentes cortes nas taxas de juros pelo Banco Central, tem feito com esse mercado se expandisse de forma acelerada.

Para as pessoas físicas, um exemplo dos benefícios dessa prática é a antecipação do recebimento de valores. Supondo um processo da área trabalhista, com tempo médio de 2 anos e 9 meses para sua execução, o adiantamento do valor da ação, ainda que menor, pode ser crucial no cumprimento dos indivíduos no pagamento de suas obrigações como aluguel, água e energia. Com os impactos da covid-19 sobre os níveis de emprego, essa necessidade de liquidez se tornou ainda maior justificando o aumento da busca por esse tipo de atividade.

Para as empresas, há uma série de vantagens na venda dos créditos judiciais. Processos que envolvam o governo, como os de créditos provenientes de mudanças em normas contábeis, podem ser extremamente demorados e, por isso, ainda que envolvam valores financeiros significativos, as empresas podem vender esses créditos para as empresas especializadas nessa atividade. O benefício vem, por exemplo, no incremento imediato de caixa proveniente dessa venda, sem ao menos considerar a possibilidade da perda do processo judicial. Além disso, o deságio na venda da autoria da ação – que costuma variar entre 30 a 70%, conforme as chances de ganho de causa, o tempo até recebimento e o montante total – pode não ser prejudicial para a vendedora, considerando, também, que possíveis gastos jurídicos constantes até o período da sentença, são evitados.

Outra vantagem evidente da venda dos créditos judiciais de empresas vem do fato que, na quase totalidade dos casos, a atividade principal das empresas que possuem essas ações judiciais disponíveis não é a jurídica. Ao vender esses créditos, a empresa ganha espaço e tempo para focar em sua atividade principal, uma vez que não precisa despender recursos no acompanhamento e gestão do processo judicial.

A relação com outros valores mobiliários existe por conta da possibilidade de investir nesse tipo de negociação, nos mesmos moldes de uma securitização, por exemplo. Assim como outros títulos de crédito são negociados em parcelas, com o intuito de diluir o risco assumido pelo investidor, processo semelhante é feito no mercado de crédito de ações judiciais. O investimento é feito através da venda de cotas proporcionais ao valor provável do processo judicial. Já a remuneração é normalmente feita através de uma parcela fixa e uma variável, conforme possível desempenho acima do valor estimado de recebimento. Dado que as empresas atuantes nesse segmento combinam know-how jurídico com softwares de inteligência artificial e jurimetria na escolha das ações que serão compradas, é muito maior a probabilidade de elas obterem êxito no processo e, também, conseguirem valores maiores que a média do histórico de recebimentos. Ainda, em caso de perda do processo, o investidor recebe o aporte inicial, perdendo somente o custo de oportunidade. O ponto negativo é que, como esses processos têm durações extensas, esse custo de oportunidade pode ser significativo.

Outra forma de investimento nesse setor é através do aporte direto nas empresas que, a partir dos recursos captados, montam carteiras diversificadas de processos jurídicos. A diferença nessa modalidade é que as ações judiciais compradas têm durações menores, mesmo que sejam de valores, também, menores. O retorno para o investidor vem da eficiência da empresa em obter êxito na conclusão dos processos. Outro ponto favorável é que grande parte dos processos buscados por essas empresas é da esfera trabalhista e, dado que a legislação brasileira impõe uma taxa de 12% ao ano na correção de valores desse tipo de ação judicial, há tanto um benefício para os investidores quanto para os vendedores desse crédito. Para os investidores, se houver demora na conclusão do processo, o valor recebido é aumentado a uma taxa de quase 1% ao mês. Para os vendedores desse processo, como eles recebem perto de 70% do valor inicialmente estimado, podem cumprir com suas obrigações e evitar, por exemplo, despejos residenciais por inadimplência de aluguéis.

Sendo assim, com a probabilidade de retornos maiores que média e as seguidas reduções de juros pelo Banco Central, são notáveis os motivos que justificam o número cada vez maior de investidores buscando, no mercado de créditos judiciais, retornos significativos. Todavia, é necessário lembrar a característica intrínseca desse mercado: a imprevisibilidade do sistema judiciário brasileiro. Com o intuito de garantir o pleno direito de defesa do executado, vários tipos de instrumentos jurídicos podem ser usados para revisitar partes dos processos em andamento, mesmo após a sentença ser dada por um juiz, atrasando, ainda mais, a execução da sentença. Outro fator de risco desse mercado é a quase independência dos juízes na determinação das sentenças. Isso faz com que casos praticamente idênticos possam ter execuções completamente distintas. Esses fatores, dentre outros, fazem com que a determinação de uma taxa de retorno para análise da viabilidade de aquisição dos créditos disponíveis seja desafiadora.

Ainda assim, pode-se afirmar que, mesmo com os riscos jurídicos do país e pouca maturidade do mercado de créditos de ações judiciais no Brasil, com a existência de um estoque de, aproximadamente, 63 milhões de processos, segundo o relatório Justiça em Números de 2019, existem claras vantagens para o ambiente de negócios e para a população no desenvolvimento desse mercado. O benefício mais evidente é esse casamento entre uma forma alternativa – e rentável - de investimento com um incentivo a uma maior eficiência judicial, gerada pela especialização da gestão dos processos em andamento.

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