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O ano das empresas que não dão lucro


Além das fortes altas no Ibovespa e da especulação sobre uma iminente desaceleração da economia global, um tema que foi alvo de um longo debate em 2019 foi a indústria de Venture Capital e a abertura de capital de empresas de grande porte que não geram lucros. Casos como o cancelamento do IPO da We Company colocam em pauta a maneira como investimentos estão sendo feitos nos dias atuais e denunciam as consequências do inédito cenário macroeconômico pelo qual o mundo está passando.


Primeiramente, vale a pena lembrar como funcionam os fundos de venture capital: uma empresa levanta capital de investidores que desejam tomar risco e investe em uma série de start-ups com a expectativa de que uma pequena parte delas consiga se estabelecer e trazer altos retornos. Esse modelo de investimentos foi responsável pelo surgimento de empresas como a Netflix e o Alibaba e pela transformação do Vale do Silício em uma potência econômica global.


Hoje, esse modelo de investimento ganhou novas proporções. As rodadas de financiamento de empresas atingem cifras bilionárias e, exemplos como os mencionados, resultaram em grandes frutos para os investidores das etapas iniciais, o que motivou IPOs em bolsas ao redor do mundo. Entretanto, a abertura de capitais, que poderia ser interpretada como sinal de sucesso de uma companhia, passou a ser um desafio sem precedentes no caso dos que, até então, eram avaliados em mercados privados. A ausência de resultados positivos não é tão bem vista pelos mercados púbicos, que não são tão tolerantes ao risco como os investidores de venture capital. Mas, por que esses investidores aceitam ter prejuízos por períodos mais longos?


Para o megainvestidor Ray Dalio, esse cenário nunca antes visto surgiu em virtude de um excesso de capital disponível para investimentos combinado às taxas de juros negativas. Esse processo, proporcionado pelos bancos centrais em políticas de quantitative easing, faz com que os investidores estejam dispostos a receberem menos do que dão e os animam com as histórias de empresas de tecnologia revolucionárias que proporcionam altos retornos no longo prazo. Dessa forma, empresas que podem não ter caminhos definidos em direção à lucratividade conseguem obter quantias gigantescas de dinheiro em caixa e fundos que investem em empresas que competem entre si se tornam comuns.


Esse ambiente, que fez Dalio afirmar que “o mundo ficou maluco e o sistema está quebrado”, refletiu intensamente no último ano, em que os IPOs das “empresas disruptivas” tomaram manchetes. Ações como a Peloton e a da Beyond Meat sofreram fortes quedas após os investidores perceberem que seus produtos por si só não eram capazes de dominar mercados crescentes e a Uber, que conta com investimentos de gigantes como o SoftBank, a Alphabet e o fundo soberano da Arábia Saudita, sofreu uma forte queda nos meses após a abertura de seu capital e agora se vende como uma nova Amazon, exemplo de empresa que passou anos com resultados negativos e obteve grandes lucros após o seu breakeven.


Entretanto, o exemplo mais notório foi o do IPO da We Company, controladora da WeWork, tido como um dos principais fracassos do mercado global em 2019. Em agosto, a empresa publicou um prospecto que detalhava conflitos de interesse e avaliações infladas com o uso de métricas pouco usuais – como o infame “EBITDA ajustado por comunidade” – o que fez a companhia ir de um valuation de US$ 47 bilhões para a beira da falência em cerca de seis semanas. Esse proceso acabou com um socorro bilionário do SoftBank, de Masayoshi Son, que via em Adam Neumann - CEO da start-up e retirado após graves indícios de má gestão - um perfil que só teria visto antes em Jack Ma, que fundou a Alibaba.


É evidente o conflito entre mercados públicos e privados, e ele se reflete no valuation. Enquanto a usual análise por múltiplos é prejudicada em virtude dos resultados negativos e a análise de fluxos de caixa é incerta, é cada vez mais comum que sejam feitas avaliações por outros caminhos. Projeções de receitas por usuário e estratégias de fidelização são usados como base e comparações com o valor de outras startups são usadas com frequências para se estimar estágios de crescimento e pontos de breakeven. Ainda assim, os resultados que dependem de muitas premissas tornam os modelos menos decisivos e fazem com que os investimentos sejam ainda mais guiados pela confiança no management.


De qualquer forma, esse ambiente de investimentos único no qual se tornou comum realizar IPOs de empresas deficitárias demonstra que o mercado atual faz parte das consequências de um cenário macro nunca antes visto. Novos paradigmas vigoram no mundo inteiro, e resta saber o que acontecerá com as próximas mudanças estruturais que virão nessa década.

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