A formação do sistema político brasileiro mostra-se deficitária desde seus primórdios. Provas disso são a constante busca por alternativas e os paliativos que tornam possíveis as propostas dos 35 partidos que compõem a nossa base governamental. Naturalmente, o partido de situação precisa de alianças e coligações a fim de governar sem grandes oposições. O presidencialismo de coalizão, definido pela aliança entre partidos que buscam a maioria no Congresso, é o que sustenta a aprovação dos projetos em vigência, mesmo sendo de cunho particular. Por consequência, os partidos da base aliada exigem favores ou benefícios como moeda de troca de seu apoio ao governo. Tais favorecimentos constituem a principal medida adotada pelos parlamentares que articulam a relação entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional: é a política do “toma lá, dá cá”.
Fundamentalmente, espera-se que exista alguma coesão nos ideais e projetos dos distintos partidos que compõem uma coligação, para que assim componham um programa de governo. Contudo, as alianças políticas não agem segundo programas pré definidos, mas a partir de uma lógica de acordos e concessões de cargos na administração pública, sejam em empresas estatais ou ministérios. Tal articulação torna possível a união entre partidos que historicamente se opõem. Em 1994, por exemplo, o PSDB buscou pelo apoio do PT à candidatura de Fernando Henrique Cardoso. Frente a recusa do último, que nesta altura contava com uma vitória de Lula no pleito, o partido tucano aliou-se a PMDB, PPB e PFL, que até então permaneciam como as principais coalizões eleitorais. Semelhantemente, diversas outras coalizões se sucederam até a formação das atuais alianças partidárias. Essa união por conveniência gera impactos negativos à sociedade. O tratamento que é dado às distintas denúncias contra políticos fornece um exemplo disso. Recentemente, uma das desfavorecidas por esse sistema foi a ex-presidente Dilma Rousseff. Um dos principais motivos do impeachment da petista foi o seu fracasso em administrar sua coalizão- fator quiçá mais fatal que a improbidade administrativa ou irresponsabilidade fiscal. Se por um lado uns são prejudicados, por outro há quem se beneficie. Dois destaques atuais foram Michel Temer e Aécio Neves. Ambos os políticos foram réis de denúncias muito sólidas de corrupção, mas foram absolvidos pelo plenário graças ao jogo político.
De fato, era possível acompanhar os esforços de Temer, dentre viagens, reuniões e conversas, para que a votação na câmara lhe favorecesse. As trocas de favores foram tamanhas para barrar as denúncias que, de acordo com o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, já não restava mais caixa para negociação de emendas para 2017. Assim, Temer alterou sua estratégia e começou a barganhar a liberação adiantada das emendas de 2018. Em outubro, os brasileiros observaram o resultado bem-sucedido de “tapinhas nas costas” pelo placar de 263 contra e 227 a favor do presidente.
Tal placar só foi possível também graças ao atendimento de anseios da bancada do ruralista. Em 2017, foi enviado um texto ao Congresso para diminuir o tamanho das Reservas do Jamanxim, flexibilizar as regras para licenciamento ambiental, flexibilizar a liberação de agrotóxicos e permitir a venda de terras para estrangeiros. Porém, o ponto mais polêmico, também de interesse da bancada em questão, é a portaria do trabalho escravo. Se antigamente o Brasil era referência contra ao trabalho escravo - em razão da portaria nº 1.129 - agora pode se tornar complacente. As alterações da portaria sugerem a modificação do conceito de “trabalho escravo” e maior burocratização das denúncias da mesma. Antes, trabalho escravo era definido como a submissão a trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes, além da restrição da locomoção em razão de dívida, sendo que bastava apenas um auditor fiscal para fazer a denúncia. Com a alteração, a definição de trabalho escravo passa a ser mais restrita, configurando trabalho escravo a submissão a trabalho exigido sob ameaça de punição, restrição de transporte para reter trabalhador no local de trabalho em razão de dívida, uso de segurança armada para reter trabalhador e retenção da documentação pessoal. Ademais, a denúncia deverá ser feita somente através de boletim de ocorrência. Tais mudanças a fim de agradar a bancada, caso efetivadas, poderão trazer sequelas graves. Entre elas, cabe destacar a degradação da natureza, a sujeição de pessoas à condição de injúria à dignidade humanas, ameaça à cultura da população indígena e violência.
Hoje, não há como um executivo governar o país sem seguir as regras do jogo do “toma lá, dá cá”. Triste realidade um país no qual as questões de estado são tratadas como questão de governo. A discussão mais recente está em torno da reforma da previdência. É evidente que as contas não fecham, muito por causa da previdência social, que representa quase 23% de tudo o que o governo gasta. Essa agenda deveria ser discutida e alterada de forma urgente. Contudo, não haverá evolução caso o presidente não saiba articular.
O desdobramento de acordos e concessões como principais fatores que impulsionam o sistema político brasileiro reafirmam a necessidade de uma reforma política. As principais mudanças propostas implicam a extinção de cargos para vice-presidente, vice-governador e vice-prefeito; a proibição da reeleição; alteração de mandatos para cinco anos; a mudança para o sistema eleitoral de lista fechada; proibição de financiamento de campanhas por empresas privadas e a proibição de coligações partidárias para eleições proporcionais. A política do “toma lá, dá cá” é fortemente beneficiada pela forma como o sistema eleitoral se estabelece atualmente, que é contando apenas com a quantidade de votos que cada partido ou coligação recebe para alcançar as vagas no Congresso. Com a reforma, o eleitor votaria em uma lista prévia de candidatos e as vagas remanescentes seriam distribuídas pela quantidade de votos. Além disso, o fim do financiamento eleitoral por empresas- que indubitavelmente influem nas votações de projetos- e a limitação das coligações apenas para eleições majoritárias, dificultam grande parte dos acordos para benefício pessoal que se seguem de maneira tão natural nas nossas bancadas.
Portanto, para que de fato seja aprovada uma reforma que revolucione as históricas falcatruas e endossos no “jeitinho brasileiro”, é necessário que os deputados e senadores que compõem o Congresso votem a favor de medidas que rompem com seus atuais privilégios. A maioria das medidas que se seguem no Brasil, sejam elas benéficas ou contrárias aos desejos da população, sucedem em função do sistema de alianças, evidenciando não apenas um problema crônico da nossa política, mas um dos alicerces em que consiste todo o sistema. Como disse o ex-ministro Joaquim Barbosa “o Brasil é o país dos conchavos e dos tapinhas nas costas”, o qual, de acordo com José Saramago, permite “fazer coisas nada democráticas democraticamente”.
Artigo publicado em dezembro/2017 na 19ª edição da Markets St.
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